quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Arca de Noah




Ontem era um daqueles dias em que ficar deitado na cama o dia todo não seria má ideia. Não só pelo mau tempo que desde cedo batia nas janelas de São Paulo, mas também desde os vários "acordar" na madrugada, rotina que tem se tornado constante no meu dia-a-dia, um frio estava me tomando a alma como se alguma coisa macroesférica estivesse para mudar. Não sou de acreditar em teorias apocalípticas, apesar de ter eu afirmado ser um apocalíptico, mas isso é como ser filosófico não religioso, porém comecei a formular cá para mim uma teoria particular perante os eventos ocorridos nesse início de ano, pois foi ao chegar ao trabalho e descobrir de cara que o cineasta Theo Angelopoulos faleceu ontem filmando o que seria seu próximo longa-metragem, mais uma vez demonstrando sua grécia arruinada pela dominação economica de alguns poucos países (apesar de ser um país europeu, hoje visão quase profética perante a decadência do euro em relação a seus filmes de dez ou vinte anos atrás), como vinha fazendo já há quase cinquenta anos de carreira. Aos 76 anos de idade, Angelopoulos nos deixa uma obra infinitamente enigmática, assombrosamente artística, atropelado por uma moto, simplesmente, na rua, dentro de seu set de filmagem. Com certeza havia algum responsável que comeu bola, mas não é a ele que queremos culpar.

Um pouco mais tarde descubro o oposto do grande artista, mas não deixando de ser artista, recente falecimento de um colega, não tão importante no cenário mundial cultural, mas colega de trabalho, talentoso demais, que me acompanhou durante alguns anos de minha vida e com seu jeito debochado de ser sabia como poucos, tirar leite de pedra e despertou em mim o prazer de tocar música brasileira de qualidade para quem quisesse ouvir. Eu e Danilo, dançamos muito juntos nesse curto, mas proveitoso período e, em sua história, não consigo imaginar dor maior do que o diagnóstico de câncer na coluna para quem se expressava tão bem com o corpo. Dor que César Vieira colocava em um texto que meu pai encenou há muitos anos atrás e que Renata Zhaneta tão bem atuou chamado "Um uísque para o Rei Saul", quando ela, bailarina jovem e célebre em pleno momento de deslanche da carreira sente fisgadas aqui e ali nas pernas e ao ir ao médico "todo de branco, calças brancas, camisa branca, sapato branco, tudo branco. Mas não tinha rosto", ao perguntar: "-Dançar?" recebe a notícia: "- Não, nunca mais dançar!". E naquele momento há quase vinte anos, talvez eu moleque tenha entendido o que era impedimento de verdade, e ainda obrigado a conviver com notícia tão dolorosa, simplesmente porque desistir da vida era sinal de fraqueza.


Tão dolorido como Alzeimer para outro companheiro, Fernando Peixoto que faleceu há duas semanas, um gênio do pensamento, empregado aposentado do governo federal da cultura, deixando uma vasta coletânea publicada, contribuição de ouro para o teatro brasileiro com a tradução da obra de Bertolt Brecht. Foi-se também Etta James talvez formar um time dos artistas, que também já lá os esperavam.


Talvez a morte sirva para pensarmos o que fazemos de nossas vidas simplesmente, e como as estamos vivendo, como as desperdiçamos em pequenas discussões, ou brigas inúteis, por dinheiro, poder ou qualquer outro tipo de materialismo miserável que nos faz sempre esquecermos do outro que está ao nosso lado, de lhe dar uma palavra de carinho, um abraço de consolo, mesmo que estejamos distantes por muito tempo, mesmo que nosso orgulho por uma briga no passado nos impeça de chegar e falar "me desculpe, eu estava errado", ainda que o erro foi apenas ter brigado.


Minha teoria, por fim, é que talvez o fim se aproxime mesmo, mas Deus esteja montando sua própria arca de Noé humana, levando daqui os melhores para deleitar sua companhia antes dos céus ficarem empesteados de tudo quanto é gente. Como diria "Entidade" Danilo Moreno, muito axé prá quem fica.

Um comentário:

Sharonline disse...

Só saberemos se essa arca existe se um dia formos escolhidos a embarcar, mas sinceramente espero que isso demore muito.
E enquanto isso não acontece, vamos aproveitar, felizes, o que temos aqui.